Dia 27 de janeiro foi instituído, em 2005, pela Assembléia Geral da ONU, como o Dia Internacional em Memória das Vítimas do Holocausto1 .
Neste 2015, em especial, lembra-se o setuagésimo aniversário de libertação do campo de concentração nazista Auschwitz Birkenau. Foi em 27 de janeiro de 1945, um sábado, pela tarde, que as tropas soviéticas chegaram ao campo, libertando-o, muito embora ainda na noite anterior os fornos crematórios tivessem trabalhado incessantemente! Os soldados alemães resistiram muito, o que provocou a morte de 231 soviéticos. Oito mil prisioneiros foram libertados, quase todos em situação deplorável devido ao martírio que sofreram2. O Dia Internacional objetiva incentivar a sociedade civil a promover a memória do Holocausto a fim de que as gerações futuras não repitam os erros do passado.
E os graves erros ocorridos puderam ser perpetrados porque, ao lado de questões de cunho político, econômico, sociológico e psicológico determinantes, as propriedades físico-químico-toxicológicas de algumas substâncias ocasionaram o uso criminoso e altamente condenável de suas toxicidades.
Assim é que as palavras cianeto (cianídrico), cloro e nitrogênio podem ter muito mais em comum do que serem apenas nomes de elemento e substâncias químicas. Qual misterioso e, no caso, triste elo poderia reuni-las? Para auxiliar o leitor interessado vamos já dar a melhor pista, outra palavra: zyklon.
Ajudaremos mais: diremos que zyklon é um vocábulo da língua germânica e que se consultarmos dicionários de alemão-português encontraremos, em vários deles3 , como equivalente em nosso idioma, o verbete ciclone.
Será isso o suficiente? Para os leitores que não se cansaram e que possuem espírito investigativo, acrescentaremos um momento e um fato histórico: 1942, Segunda Guerra mundial. Mais? Pois bem: fazendo jus ao título, listemos: cianeto, cloro, nitrogênio; zyklon; 1942, Segunda Guerra; Toxicologia, toxicidade. Quem arrisca?
Parabéns, acertou quem percebeu que zyklon era a designação de um artefato químico que continha cianetos, cloro, nitrogênio e que foi intencionalmente empregado, por conta das características de sua toxicidade, para produzir extermínio humano.
Assim, vejamos um pouco de sua toxicologia e de sua história.
Zyklon foi o nome de um produto praguicida, composto de cianetos, cloro e nitrogênio, cujos substantivos em língua alemã são, respectivamente: zyanid, chlor e nitrogen, e de cujas iniciais pode ter sido formado. Já Zyklon B, marca registrada, indica o produto em uma de suas diferentes concentrações.
Em 1924, a Deutsche Gesellschaft für Schädlingsbekämpfung mbH (Degesch), corporação alemã para o controle de pragas, hoje Detia-Degesch GmbH4 , criou o Zyklon B como um inseticida . O produto, baseado na ação tóxica do ácido (“gás”) cianídrico, trazia o cianeto aplicado a um veículo poroso (terra diatomácea) e era hermeticamente acondicionado em recipientes metálicos (houve também, dentre outros, um Zyklon A, em que o ácido cianídrico era veiculado em um líquido e numa dada concentração. Havia um leque de concentrações do produto6 ). Por ser inodoro, para fins de segurança de comercialização adicionava-se um alerta de odorização, um éster do ácido bromoacético. O uso da palavrazyklon (na acepção de ciclone) continua a provocar reações negativas de grupos judeus. Assim, a Bosch Siemens Hausgeräte e a Umbro viram-se obrigadas, em 2002, a desistir das tentativas para usar ou registrar a marca para produtos seus.
Detalhe das embalagens de Zyklon B e uma máscara de gás encontradas no campo de concentração nazista Majdanek (Polônia)
Fonte: http://www.historyplace.com/worldwar2/holocaust/h-zyklon.htm Crédito da foto: Main Commission for the Investigation of Nazi War Crimes, Below: Archiwum Akt Nowych, both courtesy of USHMM Photo Archives |
Mas a história começa antes de 1924. A Degesch, por ação, dentre outras, da BASF e da Degussa, foi fundada após a Primeira Guerra Mundial, em 1919, para desenvolver o uso de cianeto de hidrogênio para fins civis. A Degesch conseguiu a patente de um derivado químico não-volátil, especialmente odorizado, para uso na agricultura. Em 1922, a Degussa AG assumiu a Degesch. O capital da Degesch foi aumentado em 1930 e a Degussa AG e a IG Farbenindustrie AG passaram a deter, cada uma, 42,5 por cento das ações da empresa, enquanto a Theo Goldschmidt AG Essen ficou com os restantes 15 por cento. A I.G. Farben indicou três dos sete membros do Conselho de Administração. As vendas de Zyklon B aumentaram expressivamente na Segunda Guerra Mundial, constituindo um negócio muito lucrativo. Em território francês, a antiga usina química UgineKuhlmann (fundada em 1880) também produziu o Zyklon B, na fábrica de Villers-Saint-Sépulcre (Oise), em 1942.
O principal cliente comprador do produto foi a Wehrmacht7 ,embora a polícia, as administrações de hospitais, e a SS tenham também utilizado Zyklon B para fins diversos, como, desinfestação de quartéis, navios, vagões de carga, galpões de armazenamento, fábricas e para fumigar roupas em câmaras especialmente desenvolvidas (instalações de “despiolhar”).
O Zyklon B inicialmente chegou aos campos de concentração nazistas para fins de desinfestação de piolhos e combate ao tifo. Todavia, o salto para um uso triste, criminoso e condenável da toxicidade do produto foi vertiginoso e intenso: já em setembro de 1941, a SS experimentou-o em Auschwitz I (campo principal) para o extermínio em massa de seres humanos. As primeiras vítimas foram 600 prisioneiros de guerra soviéticos e 250 prisioneiros doentes. A primeira câmara de gás foi implantada numa sala que era parte do crematório. Antes do uso do Zyklon B outros agentes tóxicos foram pensados ou ensaiados para fins de extermínio humano em massa, como o monóxido de carbono. Porém, a operacionalidade do uso desse gás era bem mais complicada. Um oficial nazista, todavia, Otto Adolf Eichmann, tenente coronel da SS8 Obersturmbannführer, percebeu a compatibilidade do Zyklon B com os propósitos de extermínio que então era buscado pelas forças nazistas e foi um implementador importante de seu uso. Eichmann foi o homem da logística (identificando as pessoas e organizando seu transporte) do extermínio dos milhões de pessoas que tiveram esse fim durante a Segunda Grande Guerra, a chamada “solução final” (Endlösungem alemão).
A ligação entre Eichmann e a adoção do Zyklon B como o gás de extermínio ficou mais uma vez bem documentada durante as audiências do julgamento de Nuremberg. Na página Crime Library da internet pode-se ler:
Later, when he actually visited the camps, Eichmann saw the results of his planning for the first time. “I did visit Auschwitz repeatedly. It had an unpleasant smell,” he wrote of his experiences there. Eichmann took notice of the inefficiency of the methods used to kill the prisoners. It required too much effort and the production of the carbon monoxide gas needed for the job was not cost effective. During the Nuremberg trial years later, the former commandant of Auschwitz said, “We did not come to a decision on the matter. Eichmann was going to inquire about a gas that would be easy to use and would not require any special installations and then report back to me.” Eichmann eventually implemented the use of a poison gas called Zyklon B. This action later became the basis for the first of 15 criminal charges against him at his trial.
The Hunt for Adolf Eichmann |
O julgamento de Adolf Eichmann foi em Israel, iniciado a 11 de abril de 1961, baseado em quinze ofensas criminosas, incluindo a de crimes contra a Humanidade, crimes contra o povo judeu, e de pertencer a uma organização criminosa. Ele foi considerado culpado de todas as acusações, condenado à morte em 15 de dezembrode1961 e enforcado nos primeiros minutos do dia 1º.de junho de 1962. Fato de destaque é que enquanto acompanhava o julgamento, a filósofa Hannah Arendt escreveu uma série de cinco artigos para a revista The New Yorker, os quais originaram posteriormente o clássico Eichmann em Jerusalém – Um relato sobre a banalidade do mal. O caso mereceu também uma versão cinematográfica: A solução final (título no Brasil), 2007, Reino Unido e Hungria, dirigido por Robert Young, com Thomas Kretschmann no papel de Eichmann9.
Em Auschwitz-Birkenau, em janeiro e junho de 1942, dois barracões agrícolas foram convertidos (denominados Bunkers 1 e 2) e. utilizados primeiramente para “gaseamento” dos prisioneiros.
Em março e junho de 1943, com a participação da empresa Erfurt Topf & Söhne10 , quatro grandes crematórios tornaram-se operacionais em Birkenau. Eles foram equipados, ao menos parcialmente, com salas subterrâneas para as pessoas se despirem e câmaras de gás disfarçadas em salas de banho, para as quais a SS chegava a forçar perto de 2 mil prisioneiros por vez.
Na página da Topf & Söhne (http://www.topfundsoehne.de/cms-www/index.php?id=94&l=1) pode-se ler:
1939 |
Ludwig and Ernst Wolfgang Topf, owners and managing directors of the family business in the third generation, begin supplying the SS and its concentration camps with corpse incineration ovens specially developed by furnace construction engineer Kurt Prüfer to meet the needs of these camps. |
1942 |
With full knowledge of the practises of mass murder being carried out with gas at Auschwitz, the company – on the initiative of engineer Fritz Sander – applies for a patent for a “continuous-operation corpse incineration oven for mass use”. |
1943 |
The large-scale crematoria in the Auschwitz-Birkenau extermination camp are equipped as “death factories” with ovens and gas chamber ventilation systems from Erfurt. |
A fim de manter as vítimas sob engano e poder realizar o morticínio com “máxima eficiência”, a SS instruiu os fornecedores do Zyklon B a removerem o agente odorizante de alerta.
Mas toda essa lamentável história está assentada numa propriedade tóxica do íon cianeto, que do ponto de vista bioquímico e toxicológico é em si, como toxicodinâmica, ironicamente muito elegante.
TOXICIDADE DO CIANETO CN–
O ânion cianeto (CN–), também chamado grupo ciano [do grego κυανός (kyanós) com o significado de cor azul-esverdeada], é uma espécie química de elevada toxicidade, composta por um átomo de carbono e um átomo de nitrogênio em ligação tripla e estável, constituindo uma molécula ionizada com carga negativa. O cianeto pode formar vários compostos: orgânicos (que serão normalmente chamados de nitrilas, em que o cianeto se liga covalentemente a um carbono de outro grupo molecular) e inorgânicos, sobretudo sais (todos estes sempre de elevado potencial tóxico).
Dentre os compostos de cianeto, o ácido cianídrico (HCN, também ácido hidrociânico, cianeto de hidrogênio), um líquido altamente volátil, incolor e com o famoso odor característico de amêndoas amargas, é considerado muito perigoso, sobretudo do ponto de vista ocupacional11, por poder estar presente no ar implicando, assim, no risco de inalação. O ácido cianídrico, por ser um ácido fraco, forma-se quando uma solução contendo um cianeto lábil é acidificada. Soluções alcalinas são mais seguras de se usar, porque elas não permitem a evolução do “gás” cianídrico.
A toxicidade do íon cianeto pode se mostrar tanto a curto quanto a longo prazo, em função do tipo de exposição dos seres vivos. O ânion cianeto é um potente inibidor de uma enzima essencial ao metabolismo animal. Trata-se da citocromo c oxidase, do quarto complexo da cadeia de transporte ou transferência de elétrons (ou cadeia respiratória celular), na membrana das mitocôndrias de células eucarióticas. O CN– se liga ao átomo de ferro (Fe3+) presente no grupo heme da proteína citocromo c oxidase. A consequência de tal ligação é o impedimento do transporte de elétrons do citocromo a3 para a molécula de oxigênio aceptora final da via bioquímica. Como resultado, a cadeia de transporte eletrônico é interrompida, o que significa que a célula já não poderá produzir aerobicamente o ATP (adenosina trifosfato), composto que guarda energia em suas ligações químicas e a libera para a realização de trabalho celular. A produção de energia sob a forma de ATP é o propósito da cadeia respiratória. Os tecidos que dependem em muito da respiração aeróbica, mais vascularizados, tais como o sistema nervoso central e o coração, serão particular e rapidamente afetados por essa ação tóxica, caracterizando-se logo um quadro de hipóxia histotóxica que pode ser prontamente fatal. A morte se segue ao dano dos neurônios do SNC que controlam a respiração, uma vez que são muito sensíveis à hipóxia, acarretando incapacidade de respirar.
O esquema para essa vital via bioquímica do organismo é:
A enzima citocromo c oxidase, ou complexo IV, é um complexo proteico transmembranar presente nas mitocôndrias das células e atua cataliticamente como último elo na cadeia de transferência de elétrons, recebendo um elétron de cada uma das moléculas de citocromo c, oxidando-os. Transporta, então, os elétrons para uma molécula de oxigênio (O2), vinda da respiração pulmonar, transformando este oxigênio molecular em duas moléculas de água, processo que ao mesmo tempo produz a translocação, através da membrana, de quatro prótons que auxiliam na produção de um potencial quimiosmótico (gradiente protônico, bomba de prótons12 ) que, por usa vez, é aproveitado pela presença de outra enzima, a ATP sintase, para a formação de moléculas de ATP.
1Ver http://nacoesunidas.org/?post_type=post&s=holocausto. Acessado em 25/01/2015.
2Ver http://www.dw.de/1945-liberta%C3%A7%C3%A3o-de-auschwitz-birkenau/a-1465691. Acessado em 12/1/2105.
3Pons: http://pt.pons.com/tradu%C3%A7%C3%A3o?q=zyklon&l=dept&in=&lf=de. Acessado em 12/1/2105.
Linguee: http://www.linguee.com.br/portugues-alemao/search?source=alemao&query=zyklon. Acessado em 12/1/2105.
Infopedia dicionários: http://www.infopedia.pt/dicionarios/alemao-portugues/zyklon.Acessado em 12/1/2105.
4Ver http://www.detia-degesch.de/. Acessado em 12/1/2105.
5Zyklon B: Na Insecticide Becomes a Means for Mass Murder. Wollheim Memorial: http://www.wollheim-memorial.de/en/zyklon_b_en_2. Acessado em 13/1/2105.
6Ver: Green, Richard J. The chemistry of Auschwitz.
http://www.holocaust-history.org/auschwitz/chemistry/. Acessado em 13/1/2105.
7Wehrmacht (palavra alemã equivalendo a Força de Defesa) era a designação, no período do Terceiro Reich, 1935-1945, para o conjunto das forças armadas alemãs. Veio no lugar do Reichswehr, criado em 1921. Em 1955, as novas forças armadas alemãs foram reorganizadas sob o nome de Bundeswehr.
8Schutzstaffel (algo próximo a Tropa de Proteção), abreviada como SS ( em alfabeto rúnico), foi uma organização paramilitar ligada ao partido nazista e a Hitler. “MeineEhreheißtTreue” era sua divisa, ou seja, “Minha honra chama-se lealdade”. Surgindo como pequena unidade paramilitar, chegou a quase um milhão de homens e teve influência política notável no Terceiro Reich. De ideologia nazista, foi responsável, sob o comando de Himmler, por muitos dos crimes contra a humanidade praticados pelos nazistas na Segunda Grande Guerra.
9Ver: http://www.imdb.com/title/tt0901481/. Acessado em 13/1/2105.
10Empresa fundada em 1878, por J. A. Topf, para a produção de equipamentos e sistemas de combustão. Ver: http://www.topfundsoehne.de/cms-www/index.php?id=94&l=1. Acessado em 13/1/2105.
11Cyro Zacarias, Cyro H. Exposição ocupacional a cianetos – uma breve revisão. Revista Intertox de Toxicologia, Risco Ambiental e Sociedade. Vol.2, N.3 JUL/OUT 2009. Disponível em: http://revinter.intertox.com.br/phocadownload/Revinter/v2n3/rev-v02-n03-04.pdf. Acessado em 15/1/2015.
12Yoshikawa S., Muramoto K., Shinzawa-Itoh K.et al. Proton pumping mechanism of bovine heart cytochrome c oxidase. Biochim. Biophys. Acta, 1757(9–10): 1110–6, 2006.